O SENTIDO E O PROBLEMA DA TÉCNICA

NA DIFUSÃO CULTURAL PELA INTERNET

Prof. Dr. Ernesto de Souza Pachito

Universidade Federal do Espírito Santo – Centro de Artes

RESUMO

O paradoxo da mídia digital como instância liberalista e capitalista e a transmissão de conteúdos antiliberais. Reprodutibilidade técnica na mídia online. O problema da inserção do artista na esfera de contato com o público. A internet como local de ruído informacional. Desmaterialização e precarização do material musical online.

PALAVRAS-CHAVE

INTERNET                             STREAMING                          MERCADO

INFORMAÇÃO                    DESMATERIALIZAÇÃO

ABSTRACT

The paradox of digital media as a liberalist and capitalist entity and the transmission of anti-liberal content. Technical reproducibility in online media. The problem of artists’ inclusion in the sphere of public contact. The internet as a site of informational noise. The dematerialization and precariousness of online musical material.

KEY WORDS

INTERNET             STREAMING          MERCADO

INFORMATION          DEMATERIALIZATION

  1. INTRODUÇÃO

A internet e suas plataformas de conteúdo artístico têm sido a esperança de muitos criadores, principalmente músicos, no que toca à possibilidade de veicularem suas obras fora de um mundo, cada vez mais obsoleto, onde a entrada desse criador no universo do público depende das grandes companhias da indústria cultural. O caso da música é emblemático. No sistema que vigora há cerca de cem anos, o artista tem seu trabalho aceito pela gravadora, esta banca os custos de gravação e produção, ela compra radialistas e programas de televisão e, com grandes probabilidades, o sucesso está feito.

No entanto, as companhias de streaming, as lojas online de e-books e de livros físicos, de obras visuais, etc, não fogem a este esquema: aportam-se quantias nesses canais, o que se chama “impulsionar” a “obra”, e o alcance desta está feito. É claro que tal obra deve conter em si mesma, e desde sua criação, o germe da vendibilidade.

Na era da “reprodutibilidade técnica”, nas palavras de Walter Benjamin (BENJAMIN, 1987, p. 168), algo ocorre: a peça musical em si é veiculada em uma notória pobreza material. No caso da música, o advento do .mp3, que é um formato de arquivo musical pobre em termos da física do som, outro problema ocorre: uma elevada desmaterialização do som registrado. Se para Walter Benjamin a aura da obra de arte depende de sua materialidade, a baixa densidade do arquivo de .mp3 representa um problema a mais. Como vamos perceber nuances do timbre dos instrumentos musicais se o som destes é tornado rarefeito?

Desenvolvemos este trabalho principalmente entre estes eixos teóricos relevantes.

  • MERCADOS, MATERIALIDADE E ESPACIALIDADE DA OBRA MUSICAL

Há vida fora do mercado? Ou seria mais apropriado se perguntarmos se há vida dentro dele? Há vida para a produção cultural fora do mercado? Consistem a internet e suas ferramentas um instrumento para democratização de publicações? Não há contradição entre ser contra o mercado e publicar tais opiniões (contrárias ao mercado) justamente neste ramo da indústria cultural, a internet? Ou em qualquer outro ramo da mesma indústria? Theodor Adorno e Max Horkheimer em seu Dialética do esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113-156) expõem-nos a aliança inquestionável entre Esclarecimento (Aufklärung) e o empresariado da indústria cultural, como é sabido. O novo “(super)marketing”, que vende a criadores de todos os gêneros artísticos a suposta possibilidade de serem autores bem sucedidos, parece invadir o horizonte hipertextual daqueles que enviam para plataformas de divulgação online qualquer peça de sua autoria, posto que esses são alvos de propaganda pró redes de divulgação. Nem esses escapam.

Não apenas o artista é bombardeado por um sem-número de propostas para que ele envie dinheiro para este ou aquele site que distribui e divulga, mas também ele, o artista, se torna munição para o bombardeio sobre outras pessoas, quando estas estão navegando.

Em relação à suposta contradição entre arte de vanguarda, questionadora do mainstream da cultura de massa e o próprio ato de postagem, em plataformas que também veiculam os conteúdos mais alienantes, pode ocorrer o fato de as artes, em seu múltiplo movimento de evolução e desenvolvimento, ocupe o mercado e o modifique. Assim como ocorreu com o pintor Henri Rousseau que inaugura certo simbolismo, na pintura francesa do fim do século XIX, caminhando numa rota própria, paralela ao pós-impressionismo e, talvez, indo às últimas consequências da trilha criada pelo impressionismo (e pelo próprio pós-impressionismo). Este último movimento já bem diversificado, segundo nos conta Giulio Carlo Argan, em seu livro Arte moderna (ARGAN, 2016, p. 134-136). É claro que a época de Rousseau era outra. Seguindo, em certo momento Rousseau atingiu o mercado de arte, bem antes da internet, é claro, e o modificou com seu lance de xadrez, para citar a metáfora de Ferdinand de Saussure. Segundo o seu Curso de linguística geral (SAUSSURE, 2006, p. 104-105), a língua se desenvolve como numa jogada de enxadrista em certo momento de uma partida de xadrez: ela muda a configuração total do jogo e instaura uma outra configuração. E assim prosseguiu a partida do mercado de arte, ligeiramente modificada pela obra de Henri Rousseau, para dar apenas um exemplo. Mas, Saussure ressalta, as mudanças na língua não são intencionais (ou dirigidas, de certo modo) como no jogo de xadrez.

As críticas de Theodor Adorno à indústria cultural e ao Esclarecimento são tão abrangentes que pouca coisa fica de pé mesmo na cultura dos anos 1940 quando o livro Dialética do Esclarecimento foi escrito. Este livro é um conjunto de textos críticos que não propõe revolução. Vejamos: vivendo estes autores numa sociedade capitalista, todo o establishment é alvo de sua crítica. No governo “socialista” de Stalin, a coisa não seria diferente, como atesta a existência do retrógrado Realismo Socialista adotado por esse dirigente soviético como partido estético. Por quanto tempo mais duraria a bela aventura das vanguardas artísticas soviéticas do governo Lenin? Nós não temos a experiência de uma sociedade anarquista, ou, em autogestão, para saber como os conteúdos nela seriam passados para a população e controlados. Mas, se há controle, isso seria de fato anarquismo? Algo possível é a classificação desses autores como libertários em eterna oposição política de esquerda, sem objetivos quanto à tomada de poder com o uso de um confronto direto, como dito.

Este trabalho pretende postular todas essas “oportunidades” de publicações de obras artísticas como algo que tem um discurso tipicamente ideológico, a favor das classes dominantes, que ostentam um sem número de possibilidades de integração de artistas a mercados diversos; mas, no entanto, tudo não passa de um grande programa de calouros (televisivo) como o próprio Adorno descreve em “A Indústria cultural”, texto integrante de Dialética do Esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113-156). Nestes programas de competições, segundo Adorno e Horkheimer, a empresa midiática já sabe quem serão os vencedores, os aptos a otimizarem seu sistema de lucro e dominação.

Importante, também, é procurarmos saber o que querem as grandes empresas de disponibilização de conteúdo online quando permitem que sejam veiculados temas que, aparentemente, vão de encontro ao interesse dos media tradicionais, perfeitamente inseridos numa sociedade onde vigoram o liberalismo econômico, ou neoliberalismo, e a democracia burguesa. Conteúdos desse tipo seriam o neonazismo, o fascismo e temas da esquerda revolucionária, este último completamente distinto dos anteriores, mas todos antiliberais. Qual será a relação entre as empresas de conteúdo na Internet e as empresas de mídia do capitalismo do modo de produção capitalista? Os sistemas caminham para um enlace mútuo? Ou, simplesmente, trata-se de uma utópica proposta de eliminação dos gate keepers, termo de Wright Mills citado por Abraham Moles em Rumos de uma cultura tecnológica (MOLES, 1973, p. 9), os guardadores dos portais de acesso à publicação em mídia unidirecional. Qual o papel do público na escolha do que será sucesso? Apenas um grande número de “curtidas” e compartilhamentos assumiriam o papel dos gate keepers? Seria a Internet apenas um local mais eficiente de recrutamento de novos talentos?

Apenas como anotação, para mostrarmos uma certa permissividade das redes sociais, por exemplo, o canal do YouTube Meteoro expõe o protesto sério de um humorista inglês de nome Sacha Cohen contra a difamação antissemita que circula livre na Internet. O nome do vídeo é “Como as redes sociais destroem a sociedade” (https://www.youtube.com/watch?v=2_B4uvKrfzk Acesso em 21/9/2025). O criador que obtém sucesso num esquema de streaming sem aporte financeiro parece ser um peixe que passa pela rede por uma questão de sorte ou falha na estrutura de controle.

O que nos parece mais adequado ao autor, falemos agora do compositor, é sua articulação em grupos locais de ação cultural, para que, em torno dele se crie uma respeitabilidade profissional, engajando-se tal músico nas bandeiras de sua categoria.

Aqui, a palavra sucesso pode não se aplicar: um professor de estética, por exemplo, que não quer abandonar a docência, ou outro emprego, pode, meramente, carregar uma quantidade de música por ele composta, nos sites de streaming durante um certo tempo e não se importar com a visibilidade, ou, viralidade, de suas ações online e retirar-se de cena, ou diminuir drasticamente suas postagens.

No caso do autor encontrar em grupos profissionais forte engajamento em certas tendências políticas aos quais ele é avesso, torna-se imperioso para ele furar os bloqueios das máquinas corporativas locais e nacionais e buscar as redes de streamings de música internacionais, onde poderia haver mais liberdade, mas seguindo as regras de um mercado que só funciona com pagamento de impulsionamento.

Falando agora em termos psicológicos, do ponto de vista cognitivo reflexivo e criativo, tem-se a necessidade de um certo silêncio, essencial para que possamos refletir e produzir linguagem reflexiva e ainda, linguagem poética. Demonstrar que esta quietude não pertence à Internet também não é difícil.

Ainda no aspecto ideológico, a própria liberdade que todos têm de postagem de diversos conteúdos e opiniões, no YouTube, por exemplo, causa um “ruído ideológico” que pode manter o internauta num certo estado de torpor, ou superexcitação. Todo este bombardeio depende do que o internauta esteve vendo previamente e que influencia aquilo que lhe é oferecido em sua lista de vídeos mais imediatamente à sua disposição (são as “bolhas”).

Agora anúncios invadem a tela da smart TV, com músicas num estilo comercial sendo inseridas antes de uma peça de música mais relevante, por exemplo, que escolhemos, constrangendo-nos a ouvir as primeiras. Desta forma vemos em que se transformou o site Youtube, por exemplo.

Uma composição musical surge no recolhimento em relação ao “barulho do mundo”, produzido, inclusive, por noticiários e outras fontes de informação, conforme descreveu esta última palavra, “informação”, Walter Benjamin em “O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (BENJAMIN, 1987, p. 197-221). Mas mesmo na música séria, por assim dizer, assim que a composição estiver terminada, se for gravada ela passa por um processamento digital que já altera a materialidade do som, e o produto final é “salvo” em arquivo no formato .wav (menos pobre) ou em formato .mp3 (mais pobre) e carregado, tanto num formato como no outro, numa plataforma digital de divulgação, ou, streaming. A diferença entre o som original executado ao vivo e sem amplificação e o arquivo gravado é a mesma, em tese, que a audição em concerto e a audição gravada nos antigos LPs, coisa que fica pior no formato .mp3.

Agora, há sempre a possibilidade de que a materialidade da linguagem musical permaneça em traço nos arquivos digitalizados, mesmo com a transposição de uma poética originária para tais meios técnicos.

Mas como em grande parte da música modernista, como nas Sonatas para piano de Pierre Boulez, a materialidade é força expressiva, pelo menos nas gravações em mídia de CD, como pudemos ouvir ( https://youtu.be/-ZpNlxoXpQg?si=dThyyirPPPEDDZHK Acesso em 22/9/2025). Como pode tal materialidade, que nos convoca a uma experiência de audição poética, e que nos deixa próximos do originário da linguagem, levar-nos à experiência do poético? Como a audição de uma peça como esta, de Boulez, onde o jogo de abafamentos dos pedais do piano nos conduz a certas suspensões, pode se dar satisfatoriamente em formato .mp3?

A questão é que tomamos como base para a comparação com o .mp3 uma gravação em CD, ou seja, formato .wav, que também é digitalizada e, talvez, hiper-realista com reforço proposital, ou não, de alguns sons harmônicos.

Sim, pois temos também reforço de sons harmônicos em gravações digitais e, com isso, alteração da plástica da sonoridade, com a manipulação do material pelo engenheiro de som, no estúdio.

Mas, a audição de uma peça musical apenas em concerto é uma utopia que não pode alcançar o grande número de pessoas, como fazem os meios midiáticos e telemáticos. Provavelmente, há algo da origem indizível da matéria, que permanece no arquivo telemático mesmo na desmaterialização e digitalização de imagens, sons musicais, falas, etc, como sugerimos.

O aspecto da espacialidade da música na sala de concerto é o que mais sofre.

  • CONCLUSÃO

Como vimos, a opção de procurar divulgação, ou simplesmente a fruição das obras de arte pelo público, é uma grande ilusão. Aquilo que a mídia “unidirecional” e convencional proporciona mediante pagamento aos gate keepers não poderá ser obtido pelo artista independente, a não ser que este também pague às plataformas online valores diretamente proporcionais ao sucesso a ser obtido, exatamente como os media tradicionais. É claro que existe sempre a esperança de se conseguir verbas de leis de incentivo cultural, mas estas também têm seus gate keepers.

Os formatos digitais de arquivos de música, por exemplo, são pobres em materialidade, a não ser que provenham de fontes também eletrônicas, o que limita a escolha de estilos pela audiência. Outras formações instrumentais são prejudicadas.

Vê-se o poder crescente, há muito tempo, da indústria cultural, fator social de alienação, com a própria escassez das oportunidades de audição de concertos, onde a simples disposição dos músicos no palco (uma questão espacial)  já traz uma experiência peculiar à plateia.

  • BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 113-156.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. 2a. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 134-136

BENJAMIN, Walter. “A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In___. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, Volume 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 3a. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 165-196.

______. “O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. 197-221. In___. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, Volume 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 3a. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 197-221.

MOLES, Abraham. Rumos de uma cultura tecnológica. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1973.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 27a. Ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

WEB SITES

<https://youtu.be/-ZpNlxoXpQg?si=dThyyirPPPEDDZHK> Acesso em 22/9/2025.

<https://www.youtube.com/watch?v=2_B4uvKrfzk> Acesso em 21/9/2025.

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